Por que se come peru no Natal? E o bacalhau, por que se tornou tradição?
Por: Catarina Guerreiro
INVESTIGADORES GARANTEM QUE É ASSIM HÁ 500 ANOS E QUE O PRIMEIRO É UM SÍMBOLO DO PODER DOS NOBRES E O SEGUNDO RESULTADO DA PENITÊNCIA IMPOSTA PELA IGREJA. AS RABANADAS EVOCAM NASCIMENTOS, O BOLO‑REI IMITA UMA SOBREMESA FRANCESA E OS OUTROS DOCES REVELAM A EXUBERÂNCIA DA CONSOADA.
AS PRAÇAS DE LISBOA enchiam‑se de bandos de perus que chegavam à cidade naquela altura. Os vendedores, usando canas com mais de um metro e meio de comprimento, mantinham as aves todas juntas, enquanto caminhavam pelas ruas da capital. Seriam depois vendidas para a consoada. Era dezembro de 1801 e o padre protestante sueco Carl Israel Ruders, que residiu em Portugal entre 1789 e 1802, descrevia assim a vida em Lisboa durante o Natal, nas cartas que publicou mais tarde no livro Viagem em Portugal.
O peru era naquele tempo, como ainda é hoje, um dos pratos com destaque na mesa. Uma tradição que, segundo os historiadores, terá começado ainda antes, no século XVI, altura em que esta ave exótica chegou a Portugal vinda das Américas, na época dos Descobrimentos, através dos castelhanos. Desde aí, conseguiu impor-se e sobreviveu por 500 anos. «É, sem dúvida, a tradição de Natal mais antiga da consoada como a concebemos», refere Maria José Azevedo Costa, coordenadora do mestrado de Alimentação, Fontes, Cultura e Sociedade da Faculdade de Coimbra – o primeiro e único existente nas universidades do país.
Tudo começou, explica, por esta ave ser vista pela nobreza com um «sinal de poder» e «de ostentação», passando a usá-la em todos os banquetes e festas, incluindo o Natal. «Inicialmente era a refeição festiva do clero, da nobreza e da alta burguesia por ser uma ave de grande aparato. A tradição foi-se mantendo e alargando», explica José Pedro Lima Reis, autor do livro Algumas Notas para a História da Alimentação em Portugal. E garante: «O peru entrou na consoada através da mesa dos ricos.» Há relatos de que foi servido num banquete oferecido em 1536 por D. João III e subsistem várias provas de que o gosto das elites portuguesas e espanholas se espalhou rapidamente depois pela Europa. «Em 1549, o cabido de Notre-Dame ofereceu a Catarina de Médicis um banquete em que havia, entre outros pratos, sete perus adultos e setenta perus pequenos. E, por volta de 1600, William Shakespeare menciona o peru na sua peça Noite de Reis para definir uma dos personagens», recorrendo a imagem do animal que impõe respeito inchando o corpo e eriçando as penas – e que entre os portugueses era conhecido como peru por se achar que era oriundo desse país.
Este prato tornou-se de tal forma popular nas classes mais altas que no primeiro livro de culinária a ser impresso em Portugal, em 1680, do cozinheiro Domingues Rodrigues, da Casa Real de Portugal, no tempo de D. Pedro II, há mais de vinte receitas para o cozinhar de forma diferente. Podia ser assado, recheado, cozido, guisado, picado e transformado em almôndegas e até misturado em arroz. Hoje, segundo a tradição, deve ser assado e recheado.
«Mas naqueles tempos o peru só era consumido depois da Missa do Galo», conta Virgílio Nogueiro Gomes, um dos principais historiadores da alimentação do país, explicando que existiam regras rígidas da Igreja que tinham muita influência nos hábitos alimentares. «Nessa altura, além da Quaresma, a Igreja impunha jejum de carnes nos dias antes do Natal, o que só acabava depois da missa, à meia-noite.» Foi por isso, aliás, que o bacalhau ganhou terreno na consoada, acrescenta.
Caso contrário, os nobres só comiam peixe por obrigação, explica, por seu lado, Guida Cândido, investigadora e autora do livro Cinco Séculos à Mesa. Os registos de despesas das casas reais e as receitas da época são reveladores. No livro de cozinha que a infanta D. Maria de Portugal levou consigo para Itália em 1566, quando se casou com o nobre Alexandre Farnésio, duque de Parma, encontra-se apenas uma receita de peixe: de lampreia. «Tudo o resto são carnes», sublinha Guida Cândido, explicando que o manuscrito junta receitas do século XVI e possivelmente mais antigas e está numa biblioteca italiana.
Também através de uma análise à folha de gastos da Casa da Rainha Catarina de Áustria – mulher de D. João III – durante o mês de maio de 1571, percebe-se que se comia muito mais carne e que o peixe – como salmonete, rodovalho, ostras, entre outros – só era consumido por ter de se respeitar a penitência. «Até ao início do século XX, as marcas da religião na alimentação eram muito fortes e tinham muita influência, garante Guida Cândido.
FOI ESSA NECESSIDADE de respeitar as regras católicas que transformou o bacalhau num dos pratos principais desta festa cristã. «A refeição do jantar do dia 24 era a última do período de jejum. Comia-se peixe, à meia-noite ia-se à missa e depois regressava-se a casa para celebrar com carne e doces», refere Virgílio Nogueiro Gomes. Além disso, diz, «como em dezembro era difícil os barcos partirem para a pesca e obter peixe fresco, o bacalhau revelou-se o produto ideal para a maioria da população, pobre, cumprir em todo o país a obrigação de jejum». E foi assim, garante, que «se fixou a tradição do bacalhau na noite de consoada». Uma tradição que acredita ter começado no «Minho, onde o bacalhau chegava primeiro».
Foi essa abstinência exigida pela Igreja que levou «D. Sebastião, quando se deslocou a Castela por altura do Natal para se encontrar com o seu tio Filipe II de Espanha, a oferecer-lhe um banquete apenas constituído por peixes e mariscos para mostrar a sua forte religiosidade», diz o investigador. Ao contrário do peru, o bacalhau entrou na tradição pelos mais pobres.
«É mais acessível», diz Maria José Azevedo, acrescentando que a época do ano em que o Natal é comemorado em Portugal também facilitou a escolha deste peixe como alimento preferido: «É um prato de clima frio que é servido bem quente, com características que fazem parte do que é a consoada, que significa consolo, regalo.» Este peixe resistiu e hoje, cinco séculos depois, ainda é o símbolo do Natal.
Virgílio Gomes vai mais longe e garante que já há notícias de que o bacalhau era consumido no país no século XIV, admitindo que apenas passe a ser associado à consoada dois séculos depois. A falta de documentos tem dificultado o trabalho dos historiadores, que não conseguem datar com rigor o início de algumas das atuais tradições de Natal, nem saber com precisão por que razão foram escolhidos pelos antepassados para estar na mesa da consoada. Mas não há duvida, garantem, de que o peru e o bacalhau são consumidos desde o século XVI e que um era sinal de poder e o outro de penitência. «Mas a simbologia do bacalhau está também associada ao conceito de saudade da diáspora portuguesa», diz Virgílio Gomes, que em tempos encontrou, numa faculdade de Roma, um texto que associava o conceito de saudade da terra natal dos portugueses a este peixe protagonista da consoada nacional.
No entanto, lembra Guida Cândido, só a partir do século XIX ou XX se tornou um alimento com estatuto mais elevado. Durante muito tempo foi um prato sem grande prestígio, que era até consumido pelos «presidiários».
Hoje, as várias classes sociais consomem o conhecido «bacalhau com todos». «Antes comia-se só com couves, legumes ou pão. As batatas só surgem no século XIX», refere Maria José Azevedo Costa, explicando que, por não haver batata, as carnes eram muitas vezes acompanhadas de castanhas, o que levou a que hoje muitos dos recheios dos perus integrem este produto.
Na atualidade, porém, há quem substitua o bacalhau pelo polvo, essencialmente no Norte do país. «E no Sul, por serem menos religiosos, a questão do jejum não está tão enraizada e há quem opte até pelo porco», refere Guida Cândido. Ou quem substitua o peru pelo capão.
CERTO É QUE, NESTA ÉPOCA DO ANO, não há mesa que não tenha bolo-rei. «Foi uma tradição herdada dos franceses», desvenda Virgílio Gomes. Em Portugal, o primeiro bolo-rei surgiu em 1875, quando Baltazar Júnior, dono da Confeitaria Nacional, adaptou a receita da galette dês rois, um famoso bolo francês que terá surgido em França no século XVII, no tempo de Luís XIV.
«Desde o dia em que Baltazar Júnior o fabricou que a receita se manteve inalterada», garante o investigador gastronómico, acrescentando que nos primeiros anos «o bolo era apenas confecionado na época natalícia, transportando para o Natal português uma tradição francesa segundo a qual se comia este bolo no dia 6 de janeiro para comemorar a visita dos três Reis Magos ao Menino Jesus, sendo agalette dês rois a representação dos presentes oferecidos por eles: a côdea simboliza o ouro; os frutos cristalizados e secos representam a mirra e o aroma do bolo simboliza o incenso. Entre os portugueses passou antes a ser consumido durante o Natal, por ser nesses dias que se preparavam as melhores refeições e se trocavam os presentes. Nessa altura, o bolo já tinha brinde e fava, que hoje desapareceram.
A ajudar ao sucesso do bolo terá estado o rei D. Fernando II, que terá gostado muito da receita da Confeitaria, fornecedora da Casa Real. Com a proclamação da República, em 1910, este bolo chegou a estar em risco por conter a palavra «rei» e muitos passaram até a chamar-lhe bolo de Natal. Mas resistiu, recuperou o nome e hoje, apesar de ter concorrentes – como o bolo-rainha, só com frutos secos e sem frutos cristalizados, ou o bolo-rei escangalhado, com frutos secos e doce de gila – é um dos produtos mais associados a esta festa cristã.
Já as rabanadas, ou fatias douradas, uma das mais famosas sobremesas natalícias, começaram por ser um alimento que se dava às mulheres depois de terem filhos.
«Não sabemos a sua origem, mas em Espanha, por exemplo, já constam no receituário desde 1607 com a designação de rabanadas ou de
torrijas", adianta Virgílio Nogueiro Gomes. Sabe-se, porém, que segundo a tradição devia ser dado «às mães que tinham acabado de parir, para ganharem forças e serem bem alimentadas».
Nos vários relatos históricos, as rabanadas são associadas à época natalícia. «Ora, se para nós era um alimento obrigatório para as parturientes e a noite de Natal celebra o nascimento de Jesus, talvez por isso elas se associaram a consoada», considera o investigador em alimentação e autor do livro Doces da Nossa Vida, em que percorre a história da doçaria tradicional portuguesa.
Devido à sua função de fortalecer as mães, inicialmente as rabanadas nem eram uma sobremesa. Mas foram-se instalando e transformando num dos símbolos gastronómicos desta altura do ano. Apenas sofreram algumas mudanças. «Antes eram cozinhadas em calda de açúcar e hoje, depois de embebidas em leite e ovo, são fritas em azeite ou óleo», descreve Guida Cândido, recordando que foram os portugueses que levaram esta receita para o Brasil, onde ficaram conhecidas como «paridas».
QUANDO SE PREPARAVA O NATAL no Mosteiro de Tibães, em Braga, os monges encomendavam como sempre os doces a freiras e outras mulheres, muitas vezes até enviando-lhes os ingredientes. No final do ano de 1766, um registo das compras e despesas da instituição revela uma novidade daquele século em relação aos anteriores: os sonhos – feitos com farinha, ovos, manteiga, açúcar e canela. Nessa data, descreve Anabela Ramos no estudo Os Doces no Tempo Monástico de Tibães, o homem responsável pelas contas do mosteiro refere ter encomendado 354 sonhos e dado, para isso, dinheiro para 150 ovos e outro tanto para os restantes ingredientes.
As próprias constituições monásticas, refere a autora, permitiam que se ceasse e se consumissem «doces na consoada, último dia do Advento». E seguiam-se depois três semanas em que na ementa abundavam sobremesas: arroz-doce, pão-de-ló, cavacas, confeitos maçapães, morgados, ginetes, queijadas e talhadas e a aletria, entre outros.
«Toda a doçaria popular usada no Natal faz parte da exuberância festiva com que em Portugal se celebravam as festas de origem religiosa», diz Virgílio Nogueiro Gomes, lembrando que entre nós «os doces sempre foram símbolos de alegria e às vezes de ostentação». É o caso das filhós, das quais já há registos no século XVII. Eram feitas com fatias de pão passadas por leite, ovos e açúcar, fritas em manteiga e polvilhadas com canela. Hoje sucedem-se receitas diferentes de norte a sul. «Os portugueses gostam de celebrar com doces, herança dos mouros que aqui viveram», conclui Nogueiro Gomes.
Na consoada há ainda pinhões, amêndoas e uma variedade de outros alimentos. Mas se antigamente praticamente tudo o que estava em cima da mesa de Natal era resultado da época do ano em que se comemora esta festa, hoje isso mudou. «Agora, até há melão em dezembro», constata Maria José Azevedo Costa. Uma mudança que surge da evolução na forma de conservar os alimentos, e que, segundo os investigadores, pode vir mudar algumas tradições. Mas, por enquanto, a tradição ainda e o que era.
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