Maria Eduarda de Ataíde Sá e Melo Amaral Marques Teixeira
A minha Avó nasceu em 1925. Morreu em 2013, pouco
menos de um mês antes de completar 88 anos.
Viveu uma vida feliz, apesar dos dissabores que
numa existência em pleno são inevitáveis.
Nasceu no seio de uma família grande, privilegiada
(a pulso, pelo Bisavô João), de refinada inteligência e humor. E partiu rodeada
de uma família igualmente grande (dois filhos, um genro, seis netos, seis
bisnetos e um número que já não sei contar de sobrinhos).
Escrever sobre a Avó não é tarefa fácil. É, garanto,
sempre uma tarefa inacabada. As valências da sua pessoa são inúmeras, tanto há
a salientar.
A par da inteligência, a “liberdade” foi aquilo
que sempre me fascinou na Avó. A liberdade de escolher, de se adaptar, de se
actualizar sempre, aceitando sempre, com uma enorme dignidade, cada novo
desafio da vida: a viuvez, o desaparecimento precoce de todos os irmãos, um
filho que, como tantos outros, foi à guerra e voltou, para depois de novo se
ausentar para o outro lado do mundo, a mudança política e social em Portugal
(que eu sei que a Avó abraçou e gostou - nos seus últimos meses de vida, e por
diversas vezes, “deixou escapar” alguns comentários críticos à situação pré-25
de Abril).
Mais do que tudo, a Avó acompanhou, reflexiva e
inteligentemente, a modernidade dos tempos. E sempre com uma elegância e uma
postura como, desculpem-me a exclusão definitiva, nunca vi em mais ninguém. E
foi assim na vida como na morte.
A Avó nunca viveu refugiada nos apelidos de
nascença (que eram muitos), nem de vidas que já passaram e que não foram a sua.
Construiu solidamente a sua biografia pelas acções que praticou. Nunca parou. O
futuro, e nunca o passado, foi a sua vida. Olhou o primeiro de frente e do
passado queria apenas as histórias, lembranças e recordações do que viveu mas nunca
a ele ficou presa.
Ela própria o diz numa carta enviada a uma
sobrinha em 2003, referindo-se à família, para ela tão importante e da qual ela
própria foi um importante pilar:
“Enquanto nós existirmos,
as pessoas que amamos não morreram, porque vivem sempre na nossa lembrança e no
nosso coração. Vamos recordá-las sempre com muita saudade, mas sem tristeza.
Temos tantas coisas, tantos momentos, tantas lembranças tão boas nas nossas
memórias, que é isso que devemos sempre conservar como um bem precioso. Temos
de nos sentir felizes com a Família que Deus nos deu. Com os que já partiram e
com todos os que temos junto de nós.”
E isto tanto servia para a
família como para os amigos. A Avó sempre cultivou grandemente as amizades. E
tinha-as de longuíssima data. Não dispensava, fizesse Sol ou chuva, o chá
semanal na Avenida de Roma com as colegas do Colégio.
Culturalmente, a Avó
mantinha-se constantemente actualizada. Tantas vezes fui com ela ao Teatro, ao
Cinema e a Exposições. Lembro-me, desde miúdo, de com ela conhecer a Gulbenkian
como as minhas mãos. Levou-me ao Museu Grão Vasco. O ex-libris terá sido o
Museu de Cera de Fátima… muito nos rimos. Falava-me de música, dos seus tempos
no Conservatório Nacional de Música. Recordava comigo as grandes peças de
Teatro que vira, os Bailados que assistiu, as Óperas.
Exercitava constantemente
a memória e a inteligência.
Devorava palavras cruzadas
(dava-as como álibi para comprar a revista Caras e outras).
Lia imenso e sempre com
sentido crítico. E era tão bom ver o entusiasmo com que falava quando encontrava
um novo – no sentido de desconhecido - autor que havia gostado. O último,
penso, terá sido Rentes de Carvalho. O livro chamava-se “Ernestina”. Ofereci-o
porque este era o nome de um cozinheira que tivera durante anos em sua casa.
Uma figura que todos estimámos.
Mas para verem o quanto
era importante a literatura para a Avó, aqui fica mais um excerto, desta feita
de um postal de aniversário que me enviou em 2007:
“À tarde, está calor e ficamos em casa. Leio 3
livros ao mesmo tempo. Levanto-me cedo e venho ler a Divina Comédia - o Inferno
de Dante. É terrível e morro de medo. À tarde, para amenizar, leio as Cartas de
Inglaterra do Eça e à noite não dispenso um policial. Assim se vai passando o
tempo.”
Construiu assim uma grande biblioteca. Foi, aliás,
a última grande obra que realizou na casa das Eiras. Mandou fazer, onde outrora
funcionava a sala de refeições dos criados, uma biblioteca. A sua biblioteca.
Falar da Avó é, também, falar do Avô Manuel. Eram
perfeitos um para o outro. Havia igualdade entre ambos e não se permitiam a
fretes. Se um queria ir para a esquerda e o outro para a direita, assim era e
encontrar-se-iam, de novo, mais à frente.
O Avô mimava-a constantemente. Com palavras, actos
e nenhumas omissões. Tinham ambos uma inteligência forte e um sentido de humor
apurado que se completavam. E nos longos meses da doença terminal do Avô a Avó
foi uma heroína, até à exaustão física. Um exemplo. Mas era-o sempre perante a
adversidade. Era seguro que encontraríamos nela um baluarte.
O Natal era, nunca lhe perguntei mas adivinha-se,
a época favorita. Primeiro os passados na sua casa de infância, em Passos de
Carvalhais, e por fim os passados na casa das Eiras que ela organizava e
esmerava-se sempre.
Tudo profusamente iluminado e decorado. A lareira
acesa. Por cima desta um presépio grande, com musgo verdadeiro, que a Avó
sempre se ria e chamava a atenção para elementos “menos próprios” que nele
habitavam: desde camelos decapitados, a uma confusa banda de música, um mocho
de olhos esbugalhados, entre outras. O pinheiro, sempre verdadeiro, era cortada
de alguma das suas matas.
Normalmente raquítico, com meia dúzia de agulhas onde
se espalhavam as bolas e as fitas de Natal.
Tudo o resto era amor e muita comida. A canja, o
bacalhau e o peru. Uma obscena mesa de doces, e taças e tacinhas de frutos
secos, bombons de recheio e frutas cristalizadas. Sempre uma noite especial,
com muita gente – a Tia e os primos de Vouzela, os meus irmãos, os meus pais, os
caseiros da quinta e quem mais que aparecesse. A mesa de camilha com a braseira
ligada (a lareira era mais decorativa que calorifica).
Haviam duas coisas que fascinavam a Avó: o Mar e
as searas alentejanas (como somos diferentes até nisso!). Terá percorrido Portugal
de lés a lés com o Avó… mas era sempre o Mar e as searas que lhe davam
tranquilidade.
Tinha Espinho no coração. Era a praia de toda uma
vida. E tantas histórias me contou. Foi lá, no Casino, que o Bisavó João – para
grande escândalo de alguns presentes – a
levou para provar, pela primeira vez, vodka… a pedido da Avó (lembro-me de vê-la
a beber caipirinha quando existia uma espécie de restaurante italiano em Santa
Cruz da Trapa, há muitos anos).
Ouvi-la a contar as histórias das viagens de São
Pedro do Sul para Espinho no célebre Vouguinha era de chorar a rir. Era todo um
cerimonial e muitas horas de viagem. Aliás, histórias com comboios tinha
muitas. Um atentado à bomba e um descarrilamento. Um deles foi sério. Foi
parar, era noite escura, a um campo de milho.
Fico-me, para já, por aqui. São muitas as coisas
que vêm à cabeça, tantas que se atropelam umas às outras e dificultam a
escrita. Mais tarde, outro dia, voltarei a escrever.
Fica uma espécie de apresentação, que é de
saudade, de amor e de falta. A vida ainda se está a reorganizar, a preencher os
vazios da ausência. Foram anos e anos com um ritmo presente sempre certo. Agora
não há os almoços de Terça e Quinta-feira. Agora não há os jantares aos
Sábados. Vamos lá ver os Natais.
Para já, ainda não me adaptei.