Francisco de Almeida Dias
Rubrica Portugal é mátria
A sabedoria de certas árvores antigas enche-me de veneração. Cada um de nós, creio, está ligado às árvores da sua terra, como cada homem se apercebe, um belo dia, de ser o seu próprio pai e o seu próprio avô e que esta é a única imortalidade possível.
A citação é do narrador e autor teatral italiano Ennio Flaiano (1910-1972) e evoca a imagem simbólica da árvore como a da própria imortalidade, na ligação à terra e à família, raiz que se renova a cada geração. Serve-me ela para introduzir duas avós, as de José Daniel Ferreira, autor do blogue “As receitas da avó Helena e da avó Eduarda”
Avó Eduarda |
(https://asreceitasdaavohelena.blogspot.com/), que descobri por acaso há pouco mais de um ano, enquanto procurava, na selva informativa da internet, algumas notícias de todo diversas.
Quer fosse por me sentir ligado eu mesmo à memória das minhas avós, ou por reconhecer na arte culinária um veículo privilegiado dos afetos, adentrei-me nessa leitura agradabilíssima e sugestiva e rapidamente concluí que as duas senhoras em causa descendiam de ilustres famílias lafonenses, cruzadas mais do que uma vez entre si. Porque – como escreveu Natália Correia – Portugal é mátria, vamos hoje falar destas duas avós, mães duas vezes.
A Avó Helena chamava-se Maria Helena Rodrigues Teixeira, nasceu a 5 de janeiro de 1924 naquela grande casa onde ainda hoje existe a Farmácia Teixeira, em Santa Cruz da Trapa. Era a terceira filha de Joaquim e Aurora Teixeira e o seu avô paterno era Agostinho Fernandes Teixeira, o iniciador da citada farmácia. Casou em 1944 com Delfim Soares Ferreira Júnior, com quem veio viver para Lisboa, onde o marido era representante de grandes marcas de têxteis, com escritório na Rua da Madalena.
A história desta avó é a mesma de tantas senhoras da sua geração e de muitas gerações antes dela: a dedicação ao marido, ao filho e à família. Foi na vivência dessa autêntica (e religiosa) vocação que se desenvolveu o seu saber culinário, tão apreciado e recordado por todos quantos com ela privaram. Os regressos da capital a Santa Cruz da Trapa eram regulares, nas férias, em épocas festivas ou datas familiares e foram eles ocasião de recolha e laboratório de parte desse receituário com o que nutriu aqueles que amou, contribuindo para se manter viva, de forma indizivelmente afetuosa, nos seus corações.
Avó Helena |
Aqui fica uma das receitas trapistas da Avó Helena:
Pudim de Laranja (receita da mãe, D. Aurora Rodrigues Teixeira)
Batem-se 10 ovos inteiros com 450 gr de açúcar e sumo e raspa de 1 laranja. Depois de bem batido leva-se a cozer em banho-maria, em fôrma barrada de açúcar queimado.
A Avó Helena era prima direita do Dr. Manuel Marques Teixeira, nascido também ele em Santa Cruz em 1908 e, no seu tempo, figura de importância nacional; era prima e veio a ser comadre, quando o filho José Manuel casou, em 1970, com Isabel Maria, a filha do antigo Deputado e Governador Civil de Viseu e de Portalegre. O Dr. Marques Teixeira era, portanto, o marido da outra avó homenageada – a Avó Eduarda.
Sobre ela escreveu, no mesmo blogue, José Daniel Ferreira: «A par da inteligência, a “liberdade” foi aquilo que sempre me fascinou na Avó. A liberdade de escolher, de se adaptar, de se atualizar sempre, aceitando sempre, com uma enorme dignidade, cada novo desafio da vida (…) Construiu solidamente a sua biografia pelas ações que praticou. Nunca parou. O futuro, e nunca o passado, foi a sua vida. Olhou o primeiro de frente e do passado queria apenas as histórias, lembranças e recordações do que viveu, mas nunca a ele ficou presa.»
Recordada pelo neto como alguém que “acompanhou, reflexiva e inteligentemente, a modernidade dos tempos”, teve como última das suas muitas leituras o romance Ernestina, de José Rentes de Carvalho – que lhe fora oferecido por ser esse o nome de uma cozinheira que vivera anos em sua casa, estimada como de família. Maria Eduarda de Athayde Sá e Mello Amaral, nascida a 2 de Abril de 1925 em Passos, não se podia dizer, como a Avó Helena, uma grande cozinheira, mas teve o mérito de colecionar e preservar para o futuro muitas receitas da sua casa materna (a bela Quinta de Passos de Carvalhais, comprada pelo pai à família Malafaia). Duas delas foram publicadas por Isabel Silvestre, no seu livro Doçuras, de 2006.
Aqui fica a receita do Bolo de Noz para os leitores da Gazeta se consolarem, agora que o tempo começa a ficar frio e convida a ficar em casa e a partilhar coisas doces, como as memórias das nossas avós…
Bolo de Noz da Quinta da Passos de Carvalhais
Com 250 gr. de açúcar, 250 gr. de nozes raladas, 7 ovos. Bate-se o açúcar com as gemas, juntam-se as nozes e as claras batidas em castelo. Vai ao forno em tabuleiro forrado de papel e bem untado. Pode rechear-se com meio litro de leite, 150 gr. de açúcar, 2 colheres de sopa da farinha Maizena, 175 gr. de manteiga. Com o leite, açúcar e a Maizena faz-se um creme e deixa-se arrefecer completamente; bate-se a manteiga e vai-se juntando o creme às colheres, batendo sempre. Se se preferir, pode rechear-se o bolo com ovos moles.
Texto originalmente publicado no jornal regional de São Pedro do Sul - GAZETA DA BEIRA
Sem comentários:
Enviar um comentário