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Revista Panorama, Série IV, nº 4 - Março de 1963 |
As Receitas da Avó Helena e da Avó Eduarda começou por ser um repositório de receitas de família, herança das minhas Avós Helena e Eduarda. Num ápice, foi sendo aumentado o espólio documental do blog através da incorporação de outros cadernos de receitas ou livros (por doação/oferta ou compra em leilão/alfarrabista) e a pesquisa e recolha de material em livros, jornais ou revistas. Acima de tudo, este é um espaço de partilha, de carinho, de memória e de saudade. Um espaço de História.
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Revista Panorama, Série IV, nº 2 - Junho de 1962 |
Quem não puder acreditar que vá
lá e veja, porque o que nos trouxe a falar de Peniche não foram as suas cores
nem o seu mar, mas a fama de um dos mais célebres pitéus da cozinha portuguesa:
“lagosta suada” - a lagosta suada à moda de Peniche.
E porque não nos satisfaz falar
só do perfume que se desprende do tacho de barro, modesto mas indispensável, quisemos
ver com os nossos próprios olhos.
Vimos chegar os coros,
mudar as lagostas para as redes que as transportavam para as bancas da lota, e
ali, travando luta, demos o “chui” que nos fez donos do lote que iriamos
sacrificar.
Investigámos depois, junto dos
velhos, todos penicheiros dos mais idosos, a fórmula mais verdadeira do dito
manjar. Da sua história nada de concreto apurámos; todos a comem desde que
nasceram. Só António Paulo, filho do montador do Farol da Berlenga, conta que
seus pais estavam ligados ao nascimento da especialidade gastronómica que daria
fama a Peniche. Diz ele que três náufragos franceses, atirados contra a costa
da Berlenga ali permaneceram por três meses de tempestuoso mar esgotando todas
as provisões de conserva e de pão que o montador do farol possuía para o sustento
de sua família. O último recurso foi aquilo que hoje é considerado um dos mais
requintados alimentos: a lagosta.
Deixemos agora António Paulo,
filho do montador do Farol da Berlenga, preparar a “lagosta suada” à moda de
Peniche, recordando a maneira como sua mãe a fazia:
Tenha-se uma lagosta bem viva e,
para se lhe tirar a tripa, tome-se uma boa dose de coragem, porque o processo é
bárbaro mas o único eficaz.
Parta-se uma das antenas;
introduza-se pela cauda da lagosta indo até à cabeça. Feito um ligeiro
movimento rotativo puxe-se rapidamente a antena. Coloque-se a lagosta suspensa
sobre um tacho de barro, onde se deitaram previamente dois ou três dedos de
água, e sangre-se o crustáceo. Estenda-se depois sobre uma tábua, aperte-se bem
com a ajuda dum pano, e com uma faca bem afiada corte-se pelos anéis.
Cortem-se depois as antenas, as
pinças e as patas. Abra-se a cabeça da lagosta ao meio, no sentido perpendicular,
retire-se e rejeite-se o saco e aproveite-se todo o restante recheio.
Aproveite-se também todo o líquido que ficar na tábua. Piquem-se 3 cebolas e um
ramo de salsa juntamente e cortem-se 2 dentes de alho em lâminas finíssimas.
Escaldem-se 3 tomates grandes, pelem-se e cortem-se em bocados. Coloquem-se as
patas, as antenas e as pinças da lagosta no fundo do tacho de barro, para
formarem como que uma grelha. Disponha-se por cima metade da porção da lagosta.
Cubra-se completamente com um manto de cebola picada, tomate e salsa. Polvilhe-se
com algumas lâminas de alho. Tempere-se com 2.5 dl. de azeite muito fino, um
pouco de sal, pimenta e colorau. Em camadas sucessivas introduzam-se no tacho os
restantes anéis da lagosta, cebola, tomate, salsa e alho.
Regue-se depois tudo com 2 dl. de
vinho branco, e ½ dl de conhaque.
Perfume-se generosamente com um
pouco de noz-moscada e introduzam-se no tacho duas folhas de louro, 2
malaguetas e 100 grs. de manteiga. Feche-se o manjar hermeticamente, colocando
o testo no tacho com uma porção de farinha desfeita em água.
Ponha-se o tacho ao lume de
carvão, muito brando, e deixe-se suar a lagosta durante uma hora e meia, não
esquecendo de a sacudir de vez em quando, não vá ela pegar-se ao fundo.
Destape-se e deitem-se nesta altura 2 cálices de vinho do Porto. Cubra-se
novamente e deixe-se cozer o pitéu durante mais um quarto de hora.
Sirva-se no próprio tacho,
envolvendo-o num guardanapo de linho alvo.
Maria de Lourdes Modesto
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Olisipo : boletim do Grupo "Amigos de Lisboa". A. XXIX, n.º 113/114, Janeiro/Abril 1966 |